Meu corpo
que deitado na cama vejo
como um objeto no espaço
que mede 1,70m
e que sou eu: essa coisa
deitada
barriga perna pés
com cinco dedos cada um (por que
não seis?)
joelhos e tornozelos
para mover-se
sentar-se
levantar-se
meu corpo de 1,70m que é meu tamanho no mundo
meu corpo feito de água
e cinza
que me faz olhar Andrômeda, Sirius, Mercúrio
e me sentir misturado
a toda essa massa de hidrogênio e hélio
que se desintegra e reintegra
sem saber pra quê
Corpo meu corpo corpo
que tem um nariz assim uma boca
dois olhos
e um certo jeito de sorrir
de falar
que minha mãe identifica como sendo de seu filho
que meu filho identifica
como sendo de seu pai
corpo que se para de funcionar provoca
um grave acontecimento na família:
sem ele não há José de Ribamar Ferreira
não há Ferreira Gu1lar
e muitas pequenas coisas acontecidas no planeta
estarão esquecidas para sempre.
Ferreira Gullar-Poema Sujo
Poema Sujo foi escrito em 1975 pelo poeta Ferreira Gullar quando estava no exílio em Buenos Aires devido a Ditadura Militar no Brasil. Nele é criado uma bela imagem que o autor tem de sua terra, São Luís do Maranhão. Porém de todo texto esse trecho me arrepiou a espinha.
Reconheci no olhar desse poeta, um reencontro com meu corpo, como o olho, observo e vejo que este existe no mundo. Observar cada pedaço dessa coisa feita de carne, sangue, ossos, moléculas, átomos e outras partículas. Pensar na existência que esse orgânico contém, retêm e coexiste com minha alma e espírito.
Os animais também possuem a luz natural que é um espirito “espirito inato”. Ao nascer, o homem é “dotado com uma luz perfeita da natureza”. Paracelso chama-a “primum ac optmum thesaurum, quem naturae Monarchia in se claudit” (“o primeiro é o melhor tesouro que a monarquia encerra dentro de si”)(nisto concordando com as conhecidas designações do “Uno” como pérola preciosa, tesouro escondido, “tesouro difícil de alcançar” etc). A luz foi dada ao “homem interior” ou ao corpo interior (o corpus subtile, o corpo de sopro), como nos mostra claramente a seguinte passagem: “Por isso um homem pode surgir com sublimidade, sabedoria etc., de seu corpo exterior, porque toda a sabedoria e inteligência de que o homem precisa são coeternas com o seu corpo e não com o homem exterior, porque toda a sabedoria e inteligência de que o homem precisa são coeternas com o seu corpo e constituem o homem interior”; assim, este homem pode viver, e não como homem exterior. Com efeito, tal homem interior é eternamente transfigurado e verdadeiro. E embora não apareça perfeito no seu corpo mortal, contudo ele aparecerá perfeito depois da separação do mesmo…Mas ao descrever a origem do homem ou do corpo interior, constatamos que todos os corpos não formam senão um só corpo e uma só coisa em todos os homens, embora distribuídos segundo as partes bem dispostas do corpo, cada uma difere da outra. (JUNG,2013, CW Vol.8/2, §390).
O corpo nos ajuda a formar nossa imagem, nossa interioridade e também exterioridade, não há como saber com muita clareza qual é a prima matéria que dá origem a esse ser inteiro que somos, formando nosso corpo interior e exterior. Geralmente no contato de nosso cotidiano vemos muito o corpo exterior do outro, um pouco do corpo interior, pois esse está presente em sutilezas que em geral nos escapa do olhar cotidiano.
O olhar do ego, do eu está em vias atarefado com as travessias do mundo e nossa sobrevivência nele. Mas na poesia pudemos reconhecer o corpo que se fez em mil pedaços, virou interioridade e agora dura mais que o corpo do própria poeta já falecido. O corpo do qual fala já não pertence a ele, a mim ou a você, agora ele pertence a todos que são tocados por esse poema.
Olhar para si e reconhecer seu corpo com tanta sutileza é reconhecer a própria existência e olhar para o interior da alma, reconhecendo a anima mundi que está presente nesse lugar, que é meu lugar e também do mundo.
Possivelmente por estar no exílio Ferreira Gullar tenha observado de maneira tão gentil a si mesmo e ao próprio corpo. Esse que vai além de ser uma máquina de trabalho e consumo. Nele contém nossa imagem, como nos reconhecemos no espelho, contém nossos afetos, prazeres e dores.
O corpo é um vaso que contém a existência de nosso ego, da formação de nossa identidade. Quase como um livro com início, meio e fim. Contendo nossa existência dando a ela forma, título, paginação, layout. Para uns esse livro já foi escrito entre outros uma história ainda sendo escrita. Corpo nos localiza em nosso enredo e de como possivelmente podemos continuar contando nossas histórias.
Enfim corpo é identidade, nele sei que eu sou eu, seria possível ser isso fora dele? Quando morremos o mesmo para de funcionar e nossa alma contida nesse vaso volta a fazer parte do universo, animando o mundo a fora. Afinal o que fazemos irá reverberar em alguma parte desse extenso universo.
Uma consideração importante sobre a consciência é que nada pode ser cosciente sem ter um eu como ponto de referência. Assim o que não se relacionar com o eu não é consciente. A partir desse dado, podemos definir a consciência como a relação dos fatos psíquicos com o eu. Mas o que é o eu? É um dado complexo formado primeiramente por uma percepção geral de nosso corpo e existência e, a seguir pelos registros de nossa memória. (JUNG,2013, CW Vol.18/1, §18).
O corpo é parte integrante do Ego, ele é o centralizador de nossa identidade, contém nossas transformações alquímicas individuais que irão fazer parte do coletivo. O inconsciente coletivo também só pode se manifestar através do meu corpo que se manifesta no mundo, ele é a parte integrante dessa díade, um portal entre dois mundos.
Eu, outro e o mundo, tudo precisa de um corpo para conter, para delimitar sem isso nos tornamos tudo e nada ao mesmo tempo. Corpo é individualidade, ele faz parte do processo de individuação, a partir da descoberta do meu corpo e suas possibilidades e limitações conseguimos nos tornar indivíduos únicos.
Ferreira Gullar fala de um corpo seu, mas também um corpo coletivo, olhar, rever e reaver a posse do que sou e do que posso/poderia ser. Alma, espírito e carne contidos numa mesma substância isso é corpo.
Devo confessar que ignoro o que seja simplesmente o espírito, da mesma forma como não sei o que seja a vida em si. Conheço a “vida” somente sob a forma de um corpo vivo; mas o que ela seja em si e por si, em seu estado abstrato, nem seque obscuramente consigo imaginar. Assim em vez de vida, devo falar primeiramente do corpo vivo, e, em vez de espírito, devo falar de fatores psíquicos. (JUNG,2013, CW Vol.8/2, §604).
Jung (2013) em seu vol. 8/2 das obras completas nos da um outro olhar sobre a vida, dizendo que esta é corpo vivo. Sustentar a vida é parte integrante do corpo, sem ele pode-se dizer que fisicamente morremos e somente o que resta é alma vagando procurando outras formas na qual pode estar contida.
De acordo com FERREIRA (2008) os processos fisiológicos e os processos psíquicos são interdependentes, fazendo com que o biológico e o simbólico dialoguem desde o início da construção da subjetividade. Não há limite claro entre o físico e o psíquico ambos constituem o indivíduo.
O corpo escreve todas nossas convenções sociais, ele é o principal elo de ligação do indivíduo com o mundo. Apesar de sua interioridade ele é socialmente construído, pois ele vai conseguir ter a possibilidade de se tornar símbolo reproduzindo aquilo que faz sentido no mundo. De acordo com FERREIRA (2008) As representações do corpo operam de acordo com as representações disponíveis na sociedade.
NASSER (2010) apresenta a ideia que o instinto quando transformado deixa de ser apenas unidirecionado passando a ser psiquificado, ou seja, pode transformar-se para diversas formas, sendo que as imagens arquetípicas são possibilidades de transformação do corpo. Ele não está preso apenas as suas questões biologizantes dialogando com a psique fazendo com que o corpo seja uma expressão multifacetada e inteira do indivíduo
BOECHAT (2017) diz que para Jung, o símbolo é o mecanismo psicológico que transforma energia, o símbolo é sempre polissêmico,portador de sentido e transformador da psique. O corpo ganha vida a partir do momento em que ele é símbolo da representação individual, assim como a vida o corpo-símbolo possui uma infinidade de transformações e representações que vão alterando-se no decorrer da vida.
Corpo é símbolo, corpo é psicológico, ele é a mais presente forma de nossa constituição individual. Ferreira Gullar deixou de existir em sua presença física, mas ao nos deixar seu trabalho se tornou símbolo, se tornou corpo vivo. Porém agora sua psique é contida em seu corpo poético.
Há de se ressaltar porém que seu corpo poético não irá mais mudar, somente o que pode mudar é a leitura e a percepção do outro a esse novo corpo. Consideramos assim que Ferreira Gullar está vivo ou está morto?
REFERÊNCIAS
BOECHAT, Walter. Novas Perspectivas na Fronteira Corpo-Mente. Disponível em: http://www.ijpr.org.br/wp-content/uploads/docs/monografias/Anais%20do%20Congresso%20-%20texto%20de%20Walter%20Boechat.pdf. Acesso 03/03/2020, 2017.
JUNG, C. G. A Natureza da Psique. Vol. 8/2, Petrópolis, Vozes, 2013.
JUNG, C. G. A Vida Simbólica. Vol. 18/1, Petrópolis, Vozes, 2013.
FERREIRA, Francisco Romão. A produção de sentidos sobre a imagem do corpo. Interface-Comunicação, Saúde, Educação, v. 12, n. 26, p. 471-483, 2008.
GULLAR, Ferreira. Poema Sujo. Rio de Janeiro, José de Olympio, 2013.
NASSER, Yone Buonaparte d’Arcanchy Nobrega. A identidade corpo psique na psicologia analítica. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v. 10, n. 2, p. 325-338, 2010.