O presente texto é fruto de minha prática em psicologia clínica quando realizava o estágio curricular na Universidade Federal de Rondônia-Brasil. O tema do abandono surgiu após várias pessoas que atendia abandonarem a psicoterapia. Durante a pesquisa percebi que fitar o abandono é falar de amor. Somente somos abandonados quando estamos ligados àquilo ou a alguém, somente abandonamos aquilo que um dia já amamos, mesmo que por um raro instante estivemos ligados. Quem abandona deixa para trás o abandonado que pranteia o amor, ele sente o pesar da ligação que se perdeu.
O abandonado destituído de seu amor sente-se como estivesse abraçando o vento, o ar ao seu redor. Zéfiro leva o amado para longe. O mito de “Eros e Psique” apresentado por Apuleio (2009) nos oferece olhar amplificado para o tema do amor e do abandono.
Bernardi (1999) diz que o mito de Eros e Psiquê fala do despertar da Alma pelo amor, é o mito da criatividade psicológica. O desenvolvimento da psique é um caminho tortuoso e cheio de tarefas. Ora, para que a alma desperte precisamos abandonar e/ou ser abandonados, assim é dado o primeiro estalo para que nos desenvolvamos psicologicamente.
Há vários momentos no mitema em que surge o tema do abandono. Quando Eros deixa as ordens da mãe ao se apaixonar por Psiquê, quando esta abandona ou é abandonada, por sua família no alto do penhasco para as núpcias da morte, quando Eros abandona Psiquê, ao sentir-se traído e quando Psiquê desvalesse ao abrir a caixa contendo a beleza de Perséfone, abandona a vida mortal e renasce como divindade.
Esses momentos de abandono são essenciais para a transformação do casal e de sua individualidade. Se no início ambos estão profundamente ligados à dinâmica de suas famílias no decorrer do mito e com suas mortes e abandonos ambos alcançam a redenção e podem se amar, conhecendo e re-conhecendo o outro.
Primeiramente observamos Eros, atrapalhado e ligado em uma relação incestuosa com a mãe. Psiquê também tem dificuldades em sair da relação parental, é uma figura de mármore, apesar de admirada e adorada não é tocada.
Seu casamento com Eros parte de uma relação sombria, seu matrimonio é com um monstro qual não pode ser fitado. Essa sombra demonstra que o abandono da relação parental do casal ainda não foi completado. Eros teme as retaliações de sua mãe ao descobrir sua paixão, de dia é o filho da mãe e a noite se relaciona com sua anima às escuras. Não há uma relação inteira e consciente com essa anima.
Compreende-se sombra como uma parte da personalidade que é indiferenciada, negadas e posta às escuras. “Portanto, e mais em geral, o termo indica uma unidade complexa dotada de vitalidade autônoma que é fundamentalmente o negativo de cada indivíduo” (PIERI, 2002, p.474).
Psiquê continua sendo a princesinha do pai, no paraíso, mas intocada, o toque vem às escuras, apesar de sair da casa do pai continua vivenciando a mesma dinâmica. Percebe-se que o casal não assume a possibilidade de vivência de uma vida adulta e uma união íntegra entre ambos, ainda revivem a ligação familiar inicial.
Quando salta no penhasco ela parte para o desconhecido, se casa com uma figura invisível e retorcida. Como o casal não se conhece não há a possibilidade do casamento de fato, de acordo com Campbell:
O que é o casamento? O mito lhe dirá o que é o casamento. É a reunião da díade separada. Originariamente vocês eram um. Vocês agora são dois, no mundo, mas o casamento não é senão o reconhecimento da identidade espiritual. (CAMPBELL, 1990, P.17)
Levada pela inveja das irmãs Psiquê decide encarar a sombra qual está unida. Apesar do incômodo de nunca ver seu amado, não havia consciência de que ocorria algo errado em sua relação. A partir do olhar do outro, no caso de Psiquê de suas irmãs, a mortal pôde de forma débil ter consciência do relacionamento conflituoso qual estava inserida.
A desconfiança, ativada por suas irmãs, pôde a direcionar para a resolução de sua estagnação. Ela tinha que abandonar seu paraíso para que a união do casal fosse íntegra, ou seja, para que aquilo que os unisse não fosse a continuidade do complexo familiar qual estavam ligados.
Pieri (2002) relata que para a psicologia analítica complexo é um termo que indica uma estrutura psíquica mínima, carregada de carga afetiva que liga entre si representações, pensamentos e lembranças.
Ao fitar seu companheiro, ela não o faz no desejo de conhecê-lo, mas de matá-lo. Pois fora tomada por uma provocação externa não tendo elaborado esse incomodo, tomou essa provocação como algo dissociado. Ela re-pensou sua relação, compreendeu que de fato seu esposo era um monstro, ao invés de compreender que a monstruosidade era sua ligação debilitada com o deus do amor.
Logo Psiquê não toma ação no intento de aplacar sua sede de resolução, mas para responder algo fora de si, de seu real intento em procurar uma ligação amorosa fora daquele modelo que sempre teve em sua vida. Afinal naquele paraíso ela nunca foi realmente tocada, ambos não foram tocados. Anima e animus vivem em uma relação dissociada, por isso o primeiro toque entre ambos às claras foi tão perturbador e doloroso. A consciência é algo que no início machuca e dói, porém permite a ligação completa e verdadeira com a totalidade do indivíduo.
Eros não estava preparado para encarar sua relação com Psiquê e ao sentir o calor daquela paixão, não suporta essa ardência e acaba ferido, retornando a casa de sua mãe. Retorna à relação primária, não consegue lidar com o contato profundo com Psiquê, pois não abandonou o seio materno. Eros ferido abandona Psiquê, esta decide perseguir seu amado, o desejo de união com Eros leva encarar a própria Afrodite que desejava desgraçá-la.
Após passar por todas as provações impostas por Afrodite, provas que simbolizam a dificuldade da transformação psíquica, a dureza de ser psicológico na vida. Descer até os ínferos é o próprio processo de morrer, de se transformar. Após todo esse doloroso processo é que finalmente a psique pode se unir a eros, ser resgatada por esse ser que não é mais um daimon, um perturbador, agora eles podem se unir como divindades do Olimpo.
O abandono é a faísca que tenta acionar a chama da transformação psíquica, quando há este evento a movimentação psíquica do abandonador e do abandonado leva à transformação.
O abandonado sente a dor, ao senti-la escutá-la compreende que a cura existe na transformação na criação de outro sentido em sua vida. Afinal algo foi interrompido, o que parecia eterno de repente vira terno, encontra seu fim no desolamento, não tendo mais o outro ao seu lado.
A transformação surge como a maneira encontrada para sair da dor e superá-la, não há escolha ou transforma-se ou vive na dor. Conseguimos a transformação ao compreendermos o que foi deixado para trás, digerindo e transformando em um objeto internalizado. Ocorre a “antropofagia do abandono” alimenta-se dessa imagem que foi embora ela é transformada em parte do universo psíquico do abandonado.
O mitema nos apresenta Psiquê em pânico ao ser abandonada. Durante seu percurso ela não aparenta estar numa vivência egoica, racional. As formigas, o bambu, a águia e a torre são representações daquilo que Hillman (1989) chama de imaginação ou mundo imaginal. O que lhe auxilia em todo seu percurso é o contato e a sensibilidade de escutar e perceber essas imagens. Não há transformação psíquica se não entrarmos em contato com a imaginação, que pode surgir de diversas maneiras, nos sonhos, produção artística, dificuldades, sintomas, etc.
Pã indica a Psiquê que a única maneira de se curar é reencontrando Eros, a ligação, o amor. Nos momentos de Pânico onde se encontra num vazio, a maneira de reorganizar-se é conectando-se com algo, encontrando eros.
Pereira (1999) diz que o pânico é uma condição afetiva que se instaura quando ocorre o desabamento repentino dos laços afetivos que mantinham a estrutura da vida afetiva do sujeito, isso ocorre pela perda da referência que mantinha sua estrutura. O sujeito desamparado, abandonado, sem afeto, sem eros entra em pânico, pois este é um sentimento de pura perda.
De acordo com Jacoby “Eros é o nosso elo sentimental com outras pessoas com a natureza ou com nós mesmos” (JACOBY,p.70, 1984). Eros é a ligação com o mundo é o que dá sentido à vida. Por ter perdido esse sentido, seu amor erótico (mesmo que de maneira sombria seu significado estava nessa relação) Psiquê tem que reorganizar sua ligação com a vida.
Há nesse mitema uma presença fortemente feminina, são essas forças que movimentam a trama, Afrodite poderia ser vista como uma vilã de um filme hollywoodiano, porém sem ela Psiquê não seria nada mais que uma bela escultura de pedra.
A deusa do amor se incomoda, afinal, aquela mortal não poderia ser comparada a ela, tal comparação levava aquela jovem garota a ser intocada, ela ficara colada a uma persona de Afrodite, uma imagem que não a representava integralmente. Psiquê sofre uma crise de identidade por estar nessa persona arquetípica.
Não se pode ser o divino, apenas estar com ele, ao estar tão arraigada a essa personificação Psiquê não podia se ligar a nada. Para Stein (1978) Eros é o intermediário entre os homens e os deuses, ao ser confundida com a própria Deusa ela acaba não precisando dessa intermediação, não havendo ligação nem com divindades ou humanidades. Nesse ponto que entra Afrodite, a deusa do amor em seu ciúmes acaba libertando Psiquê, lhe apresentando Eros.
O feminino movimenta a psique, assim como Hillman (1984) fala que a psicologia profunda foi evidenciada pelas mulheres e sua “Histeria”. Na estória de Eros e Psiquê a força desta é o que leva a transformação psíquica do casal.
Não sabendo a quem procurar, Psiquê primeiro pede ajuda a Deméter, a deusa da agricultura, pensando que poderá auxiliar em sua dor, porém esta recusa ajuda a jovem mortal, ela não precisa da fertilidade afinal como semear uma terra virgem, ela antes precisa ser semeada, tocada, arada. Sua união com Eros era estéril, o solo qual estavam construindo sua relação era pobre.
Posteriormente busca Hera a deusa dos casamentos a grande esposa de Zeus, sendo novamente abandonada por esse feminino. Como casar, ser uma esposa se ela foi abandonada pelo amor, não há casamento sem o amor, sem o erótico. Não há casamento em uma terra infértil.
Não observando solução e desesperada, flechada por Eros, Psiquê vai até Afrodite e roga por seu auxílio. A grande deusa, alma do cosmos, aceita ajudar a mortal, desde que realizasse quatro tarefas. As tarefas ditadas por Afrodite são inumanas, trabalhos árduos até para as divindades. Psiquê é uma criatura de natureza delicada, não chega à dureza de Héracles para realizar seus trabalhos.
Sente-se desamparada, porém criaturas improváveis auxiliam em suas tarefas. Formigas, um caniço verde, uma águia e a torre. Como havia mencionado anteriormente, a escuta dessas imagens que amparam Psiquê, meio a desproteção ela consegue ser psicológica, conseguindo realizar as tarefas que lhe foram incumbidas. Tal escuta é traduzir e decifrar imagens do inconsciente tornando tais compreensíveis para o ego.
O trabalho psicológico não se destaca, não é observado pelo ego como esplendoroso, não tem a notoriedade do herói, são tarefas grandiosas, porém sutis. A conclusão dessas tarefas era associada por Afrodite como uma intervenção de Eros. A cada trabalho que concluía Psiquê se aproximava da ligação erótica, a busca em reconectar-se a um sentido lhe conferia mais maturidade desfazendo-se de ligações infantis e sombrias.
Quando desce aos ínferos Psiquê é tomada por uma beleza profunda, a beleza do inconsciente. Morre, como mortal e renasce como um ser divino. O amor a desperta do sono profundo que é o encantamento com a beleza do inconsciente e a leva até o palácio dos deuses. Do casamento de Eros e Psique nasce Volúpia.
PALAVRAS FINAIS
Viver o abandono requer a transformação do abandonado, após a transmutação se pode ter uma vivência almada cheia de volúpia. De acordo com o Dicionário Priberam (2011), volúpia é a qualidade do que é voluptuoso; prazeres sensuais; satisfação íntima. As transformações que ocorrem a partir do abandono levam ao desenvolvimento psíquico e a sensação de satisfação profunda, é do enlace entre Eros e Psique que se alcançar o prazer e a sensualidade da vida, é entrar em contato com uma sensação dionisíaca.
Aquele que abandona tem que resignificar sua relação com o que abandonou, olhar, re-ver e compreender o que não suportou naquela relação, abandonar é um ato brusco, sem vivência psicológica, deixa-se pra trás, pois algo estava insuportável naquele lugar, naquela relação, naquela vida. Não ocorrendo a ressignificação o abandonado corre o risco de manutenção de uma relação onde eros é infantilizado, onde as paixões são perturbadoras e destrutivas.
Eros ligado incestualmente a Afrodite leva a um pathos, uma paixão em um nível desorganizado, podendo encaminhar para um adoecimento psicológico. A psique não suporta esse eros infantil ela deseja matar essa bestialidade, essa figura que lhe aborda às escuras.
O abandono demanda a transformação tanto de quem fica, quanto de quem vai, Eros e Psiquê tiveram que se transformar para que houvesse sua apoteose divina. Dessa união nasce Volúpia que de acordo com López-Pedraza (2010) “É uma das emoções mais reprimidas por dois mil anos de castidade cristã…A voluptuosidade do paganismo nos fala de possibilidades de vida que não conhecemos em absoluto…é filha de um viver psíquico erótico” (López-Pedraza, 2010, p.114).
O mesmo López-Pedraza (2010) complementa que a união desse casal, somente alcança sua profundidade e amadurecimento devido à vivência psicológica do sofrer. Tais momentos nos possibilitam descer aos ínferos, colher toda sabedoria e criatividade do mundo subterrâneo e retorno transformado.
Após a vivência de sofrimento desses abandonos, é que se encontra o amor, ele surge como um demônio que nos apresenta um viver desconhecido. Sendo possível alcançar o êxtase e o entusiasmo de uma vida almada. Dioniso pode surgir afinal de acordo com BRANDÃO (1988) ele é o deus da transformação do êxtase e do entusiasmo.
Antes de Dioniso, costuma-se dizer, havia dois mundos: o mundo dos homens e o inacessível mundo dos deuses. A metamórphosis foi exatamente a escada que permitiu ao homem penetrar no mundo dos deuses. Os mortais, através do êxtase e do entusiasmo, aceitaram de bom grado “alienar-se” na esperança de uma transfiguração. (BRANDÃO, 1988, P. 140).
A saga de união de Eros e Psique demonstra uma jornada de transformação que leva a união da alma com o amor provocando sentimento de satisfação que é a volúpia, sendo exatamente onde se encerra o conto, no nascimento do fruto dessa união.
Para os homens a satisfação dura um breve período, ao voltarmos para o mundo dos mortais se inicia uma nova jornada de exploração e transformação para alcançarmos novamente o êxtase da vida, daí se torna presente Dioniso em nossa jornada.
REFERÊNCIAS
APULEIO. (2009). Eros e Psiquê; Tradução Ferreira Gullar; Ilustrações Fernando Vilela.- 1. Ed. São Paulo: FTD.
BERNARDI, Carlos. (1999) Apresentando James Hillman. IN: Rubedo, ano I, nº I. Recuperado em 29/01/2014, em: http://www.rubedo.psc.br/Artigos/apresjh.htm.
BRANDÃO, Junito de Souza. (1988) Mitologia Grega (Vol II). Petrópolis, RJ: Vozes.
CAMPBELL, Joseph. (1990) O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena.
HILLMAN, James. (1989). Entre vistas: conversar com Laura Pozzo sobre psicoterapia, biografia, amor, alma, sonhos, trabalho, imaginação e o estado da cultura. São Paulo, Summus.
HILLMAN, James. (1984). O Mito da Análise: três ensaios de psicologia arquetípica. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
JACOBY, Mario. (1984). O Encontro Analítico: Transferência e relacionamento humano. São Paulo: Cultrix.
LÓPEZ-PEDRAZA, Rafael. (2010). Sobre Eros e Psiquê. Petrépolis, RJ: Vozes.
PEREIRA, Mario Eduardo Costa. (1999). Pânico e Desamparo: Um estudo psicanalítico. São Paulo: Editora Escuta.
PIERI, Paolo Francesco. (2002). Dicionário Junguiano. São Paulo: Paulus.
PRIBERAM. (2011). Dicionário Priberam da Língua Portuguesa: Edição para Kindle. Priberam Informática S. A.
STEIN, Robert. (1978). Incesto e Amor Humano: a traição da alma na psicoterapia. São Paulo: Edições Símbolo.