Para que psicoterapia?

Interessante ressaltar que nossa fragilidade nos faz entrar em contato com o vasto mundo psíquico que é parte essencial para que possamos lidar com as demandas da vida. Em geral, toda nossa criatividade para se relacionar com os percursos está contida em nossa alma.

O tema que gostaria de discutir ou refletir no texto é sobre a função da psicoterapia, algo muito debatido diante da atual circunstancia mundial e mais precisamente brasileira.

– Vai fazer terapia!

– Preciso fazer terapia..

– Olha, talvez você devesse ver isso em terapia.

Tal situação tem deixado ou deixou de ser visto como algo canhestro, indicado para pessoas inabilidosas psiquicamente, ganhando aspecto maior como necessidade das pessoas diante as dificuldades da vida. Mesmo que de certa forma ainda há resistência em apontar o início de uma psicoterapia. Afinal não estamos falando de algo simples.

Obviamente a psicoterapia é uma invenção da modernidade, não apenas por conta de nossos avanços técnicos, científicos e de conhecimento, mas especialmente porque o homem moderno vem cada vez mais tendo dificuldade de entrar em contato com sua interioridade, com sua alma.

O sofrimento psicológico e suas patologias estão conosco desde que conseguimos nos observar e pensar como espécie, contudo sempre possuímos diversas formas de lidar e cuidar dos nossos transtornos mentais através de ritos, mitos, cultura, dentre várias outras formas de expressão, cuidado e contato com nossos materiais psíquicos.

Nosso mundo é deveras objetivo, trabalhamos, pagamos contas, cuidamos dos nossos, sempre tendo em vista o mundo objetivo. Aquilo que é subjetivo, invisível e que pertence ao mundo psíquico, o mundo almado é deixado de lado. Somente nos damos conta da existência desse quando ele nos faz sofrer. Não à toa a psicoterapia moderna nasceu olhando para os sofrimentos da alma. Haja visto o trabalho de Freud e Jung.

Logo aí surge a psicoterapia, esse espaço de encontro com o outro e minha profundidade, com a alma em seus estados mais variados e possíveis. Estabelecer esse encontro é parte essencial de nosso processo de cura. Todos temos feridas presentes em nossa interioridade, esse rito moderno de ida à analise proporciona o mergulho seguro nesse oceano e observar as possibilidades de cura da alma.

Pouco a pouco foi-se verificando que se trata de um tipo de procedimento dialético, isto é, de um diálogo ou discussão entre duas pessoas. Originalmente a dialética era a arte da conversação entre os antigos filósofos, mas logo adquiriu o significado de método para produzir novas sínteses. A pessoa é um sistema psíquico, que, atuando sobre outra pessoa, entra em interação com outro sistema psíquico. (JUNG, 2009, § 1, p. 1).

O livro “A Prática da Psicoterapia” (2009) de Jung se inicia dessa forma. Interessante atentar que a psicoterapia é antes de tudo um processo dialético, uma troca entre dois sistemas psíquicos, terapeuta e cliente, interagem entre si na busca de novas sínteses. Obsrva-se que a priori a cura se dá través da relação, não conseguimos essa isolados no alto de uma montanha sem ter contato com outros sistemas psíquicos.

Precisamos da presença do outro para sairmos de nossa estase psíquica. O outro são as relações, leituras, encontros, arte, precisamos entrar em contato com outras coisas fora de nós para que haja movimentação psicológica. Apesar da introversão necessária da solidão, apenas o outro me dá referência do movimento.

No caso da psicoterapia o outro é o psicoterapeuta que tem o preparo técnico, científico e de alma para proporcionar ao cliente a movimentação psíquica necessária para sua cura de alma. Na relação tanto terapeuta quando analisando estão afetando-se e movimentando-se é uma troca de dupla direção e assim há possibilidade de integração psíquica de ambos.

Exatamente por isso o psicoterapeuta também precisa de seu processo de cuidado psíquico, da sua psicoterapia. Ele está em constante contato com os afetos que irão penetrar seu sistema psíquico e levar a diversas direções, por isso é necessário que ele saiba quais caminhos também lhe estão sendo apontados.

Estou aqui falando sobre psicoterapia e creio ser esse um grande desafio, pois trata-se de algo complexo e em constante evolução desde seus primórdios. Para a nossa cura interna temos de passar por um processo de reeducação e transformação da personalidade. Chegamos a tal ponto de diversas formas, dependendo do sofrimento psíquico apresentado e do tipo psicológico do cliente e terapeuta.

Sendo eu da linha da psicologia analítica, corrente teórica iniciada com C.G. Jung, tenho a tendência de sempre produzir falas e conhecimento a partir desse referencial. Por conta desse fato é bem difícil falar sobre qual a melhor corrente teórica da psicologia. Quando falamos de psique estamos falando de um olhar plural sobre o mesmo objeto, cada um de acordo com sua formação psíquica vai olhar para esse fenômeno de uma forma distinta, por isso temos as diversas linhas teóricas estudadas dentro da ciência psicologia.

Caso esteja procurando psicoterapia e esteja perguntando qual a melhor corrente teórica para si, pessoalmente acredito que vale mais a pena investir em um profissional com boas referências e que a relação terapêutica seja construtiva para o processo psicoterapêutico.

Em psicoterapia, considero até aconselhável que o médico não tenha objetivos demasiados precisos, pois dificilmente ele vai saber mais do que a própria natureza ou a vontade de viver do paciente. As grandes decisões da vida humana estão em regra, muito mais sujeitas aos instintos e outros misteriosos fatores inconscientes do que à vontade consciente, ao bom senso, por mais bem intencionados que sejam. (JUNG, 2009, § 81, p. 38-39).

Tal citação do Jung nos dá um panorama de como o processo psicoterapêutico tem suas nuances, em alguns momentos procuramos a terapia por um motivo e acabamos parando em outros locais atravessando caminhos que eram inimagináveis até então. Isso é tomar consciência de nossa interioridade, pois essas questões mesmo que adormecidas em nossas camadas mais profundas tem grande influência em nossas questões psíquicas.

A terapia nos proporciona mergulhar nesses mistérios pessoais recheados de uma diversidade de sentimentos. Descer ao mundo inferior da psique não leva aos sentimentos mais agradáveis, estamos lidando ali com aquilo que é mais caro em nossa vida emocional. Logo diante desse passo quando se está em análise há de se ter uma dose de perseverança.

Imagine-se em uma maratona em que você pode fazê-la no seu tempo os terrenos ali são variados, há subidas, descidas, lugares planos, momentos de calor, temperatura agradável. Em alguns momentos você aperta o ritmo, em outros faz uma leve caminhada, mas há um deslocamento e um esforço. Essa é a imagem que tenho da psicoterapia pelo menos uma das possibilidades de visualizá-la

Re-imaginar nossa vida também é possível nesse lugar, contar, recontar e rever nossa própria vida e poder assim ressignificar as dores, amores, alegrias e tudo mais. Apesar de parecer algo simples dar um novo significado as vivências é um processo dificultoso e lento, mas pode nos tirar do caminho do sofrimento.

Ao contrário do que muitas vezes se supõe, a terapia junguiana não tem como ponto principal o autoconhecimento. A autorrealização é um processo de percepção do sentimento, de percepção daquilo que sentimos, de sentir aquilo que somos; e esse processo começa com a primeira sessão terapêutica, à qual a pessoa em geral vai devido à perturbação dos seus sentimentos e que se inicia com frequência pela pergunta: “Como você se sente?” (HILLMAN, 2016, p.134).

A citação anterior feita por Hillman abre uma outra perspectiva sobre a função da psicoterapia. Muito se diz que quando está nesse processo há um profundo processo de autoconhecimento, concordo com a premissa, contudo há de ressaltar que a terapia não irá esclarecer a maior parte de nossos processos inconscientes, mesmo assim não estará deixando de cumprir sua função.

Falar sobre sentimos, perceber tais e como dialogar com eles é também função da psicoterapia. O protocolo de dizer como você se sente volta o olhar para si, afastando-se dos automatismos do cotidiano e colocando-se afastado, conectando-se no centro do próprio mundo. Assim inicia-se o trabalho de reflexão, como olhar no espelho e se dar conta de qual a condição da alma.

Refletir amplia o conhecimento sobre si, tal qual olhar no espelho nos possibilita ter clareza sobre nossa imagem, contudo lembrando que essa reflexão precisa do outro para que não sejamos tomados e contaminados apenas pelo nosso olhar subjetivo. A psique precisa da relação para sair de sua estase, de sua relação incestuosa. Eros proporciona a Psiquê a possibilidade de relacionamento com todas as suas nuances e dificuldades. Nesse ponto é interessante ler o texto de Eros e Psiquê presente no blog.

Eros é o deus que nos liga, é a conexão com o outro, ele está presente em nossos afetos. Não se refere apenas as ligações entre amantes, mas de nossa ligação com o todo ao nosso redor. Nos apaixonamos por músicas, filmes, grupos, time de futebol, amigos, trabalho. Eros nos conecta, logo ele é divindade essencial para o encontro analítico.

EROS é o amor personificado. Em grego Έρως (éros), do v. ἒρασθαι (érasthai) “desejar ardentemente”, significa com exatidão “o desejo dos sentidos”. Em indo-europeu tem-se o elemento (e)rem “comprazer-se, deleitar-se”; em sânscrito ramaté é “ter prazer em estar num lugar”. (BRANDÃO, 1998, p.209.

Esse deus horizontaliza nossos afetos, quando somos tomados por Eros simplesmente nos conectamos de uma forma impossível de ser controlada, pois há um deleite e um prazer naquela relação. Por isso a conexão entre cliente e terapeuta é parte necessária do processo psicoterapêutico, sem ele não há essa horizontalidade necessária para que o processo de transformação psíquica ocorra. A psicoterapia é antes de tudo uma relação, com todas as nuances e especificidades desse local, mas ainda é uma relação.

Essa conexão permite que ocorra um local seguro e de confiança para que a psique apareça de forma integral. Como no mito de Eros e Psiquê, a partir desse encontro inicia-se os trabalhos da psique que irão levar a transformação psíquica e do amor e à sua apoteose divina.

Outra divindade presente no encontro analítico é Hermes o único deus que tinha livre acesso ao olimpo, mundo dos homens e mundo inferior. Ele proporciona que possamos olhar para o consciente, inconsciente, vida futura, a vida que já tivemos, olhar nossos aspectos divinos e profanos, além de vida e morte. Ele é a verticalidade psíquica, se pensarmos que cada um desses mundos apresentados na mitologia grega são lugares psíquicos.

HERMES, em grego Ερμής (hermês), tinha sua imagem colocada nas encruzilhadas, local de orientação, sob a forma de colunata, encima da cabeça do deus. A essas colunatas ou pilares se dava o nome de (hérmata), plural de (hérma), “apoio, cipó, coluna”, a que parece prender-se o nome Hermes. (BRANDÃO, 1998, p. 191).

Interessante notar que ao colocar as imagens de Hermes nas encruzilhadas enfatiza o fato de que o deus estava presente em todos os caminhos e possibilidades, a encruzilhada é o local de escolha, de possibilidade de direções e também de encontro. Tais aspectos são intensamente presentes no processo psicoterápico, pois esse é o lugar da multiplicidade de olhares.

A coluna além de ser algo que dá sustentação enfatiza a verticalidade de Hermes. Quando estamos em análise também se observa essa diversidade de olhares. Olhamos para nossa interioridade, exterioridade estamos nos relacionando com todas as dimensões de nosso psiquismo.

Obviamente que em termos da psicologia analítica pode-se citar outras referências mitológicas que são presentes nesse processo psicoterapêutico, mas foquei nesses dois, pois no meu entender são os principais na dinâmica de funcionamento desse encontro, pois dá a abertura de olhar, liberdade e conexão. Assim conseguimos estar presente nesses processos.

Bem creio que ainda não respondi à pergunta titulo desse texto, afinal para que psicoterapia? Não sei bem ao certo se há uma resposta certa dos motivos que podem levar uma pessoa buscar esse espaço. Buscar solução para um sofrimento psicológico, curar-se da depressão e ansiedade, questões amorosas, questões de trabalho, vínculos de amizade, entender melhor seu funcionamento psíquico, em algumas situações somente ir sem saber o porquê.

Talvez a terapia seja o início do caminho para uma resolução das situações citadas, ou as mais diversas outras, mas é o inicio para o encontro com a interioridade, explorar a si e permitir que o fluxo da vida possa novamente seguir o caminho que desejamos em nossa profundidade.

Pessoalmente eu observo a terapia como um lugar onde posso me tornar uma pessoa melhor, não no sentido moral, melhor para mim mesmo, para o meu desejo, para minhas buscas, para minhas emoções e inevitavelmente melhor para as pessoas ao meu redor. Esse lugar de extrema intimidade que sabe tudo sobre mim e meus segredos, começa sim numa atitude individual, mas que ecoa para o coletivo.

Estar consigo de maneira franca e íntegra na relação com o outro auxilia para que a vida volte a sua naturalidade e nos desprendamos dos rumos psicopatológicos que nos acorrentam. Porém como a vida e suas dificuldades são contínuas não sei dizer ao certo qual o momento correto de parar com a psicoterapia, ela pode ter semanas, meses, anos. Mas quando sente que aquele espaço alcançou o objetivo que buscava é bom se afastar e fazer seu caminho solo, sem o guia que acaba sendo o psicoterapeuta.

Digamos que quando se está educado para compreender e lidar com suas manifestações psíquicas é bom caminhar sozinho, explorar e se desafiar. A partir do momento que se fez um processo psicoterápico aprendemos a olhar para o mundo e para si de uma forma diferente, de uma forma psicológica. Por isso caso pense em iniciar algo assim eu sempre indico, inicie esse olhar para o centro de si e o centro do mundo, a partir daí as coisas irão mudando de tom, cor, forma e etc.

REFERÊNCIAS.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega: Volume II. 2ª ed. Petrópolis, Vozes, 1998.

JUNG. C. G. A prática da psicoterapia. Petrópolis, Vozes, 2009. O.C Vol XVI/1.

HILLMAN, James. A função sentimento. in  FRANZ, Marie-Louise von; HILLMAN, James. A Tipologia de Jung: ensaios sobre psicologia analítica. 2ª ed. São Paulo: Cultrix, 2016. 

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