“Esperando Godot” é uma peça de teatro escrita por Samuel Beckett e, para manter o foco da discussão apresentada neste trabalho, baseamo-nos na versão cinematográfica dirigida por Michael Lindsey-Hogg, lançada no ano de 2001.
O cenário inicial da peça é um local árido cheio de rochas, quase morto, não há terra ou barro, não há possibilidade de criação. Naquele cenário não há vida, não há nem sinal de morte, aparenta algo imutável, nem um deserto tem a capacidade de imutabilidade. Há apenas o cinza, rochas quebradas que não foram desenhadas pelo decorrer do tempo, pelos ventos, chuvas, sol e movimentos tectônicos. Quase como uma montanha que foi detonada por dinamites, diminuindo todo o seu esplendor.
Há um sinal de devastação, como se estivesse ocorrendo ali um processo alquímico. Existe o sinal de morte e de vida, de criação e destruição. “Para o alquimista, toda matéria contém a vida” (BRANDÃO, 1988, p. 200). Tudo o que se têm são rochas, matéria ainda bruta para a transformação.
Nada é mais sem graça que o cinza, ele nem é preto, nem branco, é uma indecisão pura e simples, não há a força da união dos opostos, não é ying e yang. Na alteridade, o preto e o branco podem coexistir. Essa dinâmica não existe no cinza, as duas cores tentam se engolir, numa existência que esconde o pulsar do branco e do preto. As cidades são cinzas, as cinzas são o que restam depois que algo pega fogo, existe vida transformadora por trás do cinza.
Ao lado desse cinza e das pedras há uma árvore solitária. Tão esguia que chega a dar dó, tão raquítica que se sente vontade de alimentá-la. Afinal, como pode tal criatura desenvolver-se em solo tão infértil, tão deteriorado, tão destruído? Quase como se algo forçasse que o Nada se criasse ali. Porém, aquela árvore se põe como uma resistência da natureza ou como um troféu em que a natureza admite sua derrota? Nada se cria, nada se transforma.
-Nada há ser feito.
Essa fala inicia a trama com Vladimir (Didi) e Estragon (Gogo), dois homens de meia idade, aparentemente mendigos, com roupas surradas e caras amassadas. Demonstram um incomodo inicial, tentam fazer algo para sanar esse descontentamento, porém não há nada a se fazer.
O background da trama são pessoas psiquicamente deterioradas, existe uma devastação interna, ambos estão a meio caminho de todas as possibilidades, a estrada mostra que há algo mais além da espera. Todo o cenário representa um espelho do quadro emocional dos personagens. O primeiro diálogo demonstra que se tem um reencontro entre ambos, de volta a luta para a transformação. Dois homens incomodados e desprovidos de eros, da capacidade de conexão com o outro, esperando por um sujeito chamado Godot, esperando alguém que vai lhes dar a salvação.
A espera é angustiante, dolorida, permeada por um incomodo contínuo: olham para a árvore e pensam em se enforcar nesta, pois na sua fala dizem que assim poderiam ter uma ereção. A ereção simboliza a possibilidade de alcançar eros, tal encontro portanto seria possível através da morte. O morrer compara-se a uma descida aos ínferos, sendo esse o caminho para transformação. A raiz representa o vínculo com o mundo inferior, local onde pode se colher a criatividade e retornar almado.
De acordo com Neumann (2006), a árvore está relacionada com a Grande Mãe-Terra, pois é um elemento que gera vida e guarda o espírito, é o vaso que contêm a alma. Ela tem o poder de gerar a vida e de protegê-la. Além disso, a árvore possui uma constituição fálica, ela é o falo da terra, possuindo em si um duplo simbolismo. A planta, o vegetal é o objeto da transformação mesmo não podendo se locomover livremente na terra, algo está sendo criado, procriado e fornecido.
A árvore possui uma ligação com a vida e a morte. Além de alimentar os vivos suas raízes seguem para as profundezas até a terra dos mortos. Indicando, dessa forma, a dualidade integrada desse símbolo que unifica os opostos. A árvore representa a transformação psíquica, governada por uma consciência matriarcal que de acordo com Neumann (2006), consiste a consciência lunar, a consciência original, quando os processos ainda estão ligados ao simbolismo vegetal e feminino. Os frutos ou folhas são a apresentação consciente de uma transformação inconsciente.
O destino da árvore é o fruto, e esse destino, de acordo com Neumann (2006), é uma atividade do eterno tornar-se, um tecer e criar na vida. Na mitologia germânica a árvore que rege o destino é Yggdrasil. O divino Odin enforca-se nessa árvore, ele é conhecido como o deus enforcado que balança entre os galhos.
Fato que aproxima essa mitologia com a imagem de cristo morrendo crucificado, podendo a cruz, assim como a árvore, simbolizar o destino. A cruz é um material feito de madeira que liga céu e terra, esquerdo e direito, representando a possibilidade de integração das polaridades. Jung (2009) relata que a mandala é sempre um sistema quaternário, ela é a quadratura do círculo e, como construções mentais, as mandalas são expressões da totalidade psíquica. Tanto a cruz como a árvore representam, em nossa análise, construções psíquicas que buscam a possibilidade de integração da alma, a busca da salvação. Desta forma, a árvore da peça seria a manifestação da totalidade psíquica daquela relação.
Odin e Cristo simbolizam esse processo de criação psicológica através da morte. Essa parece ser a busca de Gogo e Didi quando olham para a árvore e pensam em enforcar-se: é o encontro com as possibilidades criativas da vida. “O paralelo lápis-Cristo estabelece uma analogia entre a substância de transformação e o Cristo” (JUNG, CW Vol. XII § 517). O símbolo de lápis-Cristo representa a energia bruta de criação da pedra e a salvação que é o próprio Cristo. Gogo e Didi buscam transformação, porém não possuem coragem de atingir a mesma, estão no ambiente bruto que possibilita a salvação, porém ficam entre a esperança e a ação, presos no jogo da dúbia dualidade.
Fazendo um jogo de palavras em inglês, GodOt é o God Out que significa o Deus fora, o deus externo, uma figura externa que movimenta a energia psíquica para a redenção. Tal jogo de palavras é possível, pois apesar da peça ser escrita originalmente em francês, a língua materna de Samuel Beckett era o inglês. Quando os personagens falam de Godot retratam algo presente, porém, impossível de ser tocado. Como se Godot fosse uma força mágica que irá leva-los para fora do deserto de cinza, o cinza que não aduba, o cinza que não renova, o cinza estancado no Nada.
O Deus Fora, o God Out que esperam, é a salvação. Salvação que só irá vir no post mortem, somente após o fim da vida se encontrarão com essa figura mágica; enquanto esperam nada acontece, nada ocorre, nada vem, apenas nada, nem morte, nem vida. Jung (2009), em seu texto “Psicologia e alquimia”, afirma que a salvação para alguns pode ser extravio para outros. Estragon e Vladimir estão em uma linha tênue entre redenção e condenação.
Jung (2009) relata que, dentro do chumbo, dessa matéria prima, esse metal pesado que leva ao fundo do rio, substância bruta e depressiva, se encontra a pomba branca representando a salvação. A terra não é um corpo inerte, nela habita o espirito que é a vida e o espírito da terra. Mesmo os minerais recebem a sua força e espírito, ela está prenhe e alimenta toda a matéria. É como se a salvação de Didi e Gogo estivesse ao seu redor, mesmo naquele cinza infértil existe vida e possibilidade de criação.
Em outra cena, com o cair da noite uma criança dá o recado de que Godot virá somente no outro dia. Ao cair da noite a espera cessa. A criança representa o puer, a capacidade de apresentar o novo.
O puer aprisiona os dois amigos no feitiço do tempo, ele apresenta o eterno recriar de novas ações, porém essa criança é gerida por Godot, que surge como a figura do Cronos o titã que engolia seus filhos e não permitia que despertassem à vida. Godot é o senex, representação da manutenção de um estado psicológico. Puer gerido pelo senex leva ao aprisionamento da alma.
Lembram-se da ideia platônica de Hades, cuja mente é tão maravilhosa que as almas não desejam deixar seus domínios? Abandonai toda esperança, vos que aqui adentrais. Não há saída para a teia da aranha, e aquilo que o espirito puer, leve e voador, mais teme é a mente Ctonica. (HILMANN, 2013. p. 214-215).
Essa gerencia do puer pelo senex mostra o aprisionamento de Vladmir e Estragon em uma teia capaz de fazê-los permanecer eternamente no mundo das trevas, levando a cronicidade do esperar.
No segundo ato a árvore se mostra diferente: surgem algumas folhas em seus galhos, ela não estava morta, estava adormecida, não há somente aridez naquele espaço, mas vida! Como dito anteriormente, mesmo que aparentemente nada esteja acontecendo a terra constantemente alimenta o mundo ao seu redor.
Quando Vladimir e Estragon voltam à espera, apenas o primeiro percebe o diferente, enquanto Estragon aparenta não ter memória, não se lembra do dia anterior quase como se a noite apagasse sua memória, nada resta a ele, não reconhece o dia anterior.
Sua lembrança é como uma vaga memória, quase como um sonho do qual se esqueceu, o que representa sua resistência de encarar a Hades – divino que, em nossa leitura, simboliza a transformação que somente acontece por meio da morte. Para Hillman (2013) o sonho funciona como uma ponte para o encontro com a morte: “Mas, se cada sonho é um passo rumo ao mundo das trevas, então se lembrar do sonho é uma lembrança da morte e abre uma amedrontante fenda sob nossos pés.” (HILMANN, 2013, p. 191-192).
Talvez o esquecimento do dia anterior seja o símbolo da resistência em encarar toda a diversidade da vida e os caminhos que lhe são apresentados. Afinal, a criatividade psicológica está intimamente ligada ao inconsciente, ao mundo das profundezas, como descobriu Jung. Através do contato com essa criatividade nos é dada a possibilidade de fazer escolhas na vida mais autênticas e profundas.
Não há memória, a memória constitui a identidade e a personalidade, sem memória seriamos um reaprender incessante, uma vivencia pueril sem fim, não há novas apreensões, vive-se em um passado. “As almas que se dirigiam ao Hades bebiam das águas do rio Lete, a fim de esquecer suas existências terrenas.” (BRANDÃO, 1988, p. 165). Esquecemos aquilo que é doloroso, jogamos nos confins da alma, aquilo que nos é apavorante, medonho, que causa asco.
Vladimir se dá conta de que Estragon não recorda o que havia acontecido e tenta relembrá-lo, e isso o ajuda a perceber que há algo estranho na espera. Como pode ele não relembrar de seu encontro fascinante no dia anterior, como pode não se lembrar da ferida que Lucky lhe deixou? Mesmo diante desses questionamentos, Vladimir, no fim, apenas espera Godot.
Estragon apresenta o esquecimento do neurótico freudiano, ou seja, o conteúdo que é insuportável para o ego se torna inconsciente e, pode surgir na consciência em forma de sintoma. Tal esquecimento não lhe permite sair da espera, pois se a memória se perdeu, não há necessidade de sair dessa condição. Resta apenas o sintoma que, no caso do personagem, é a pedra no sapato ou as dores no corpo.
Sabe-se que Freud apresentou seu conceito de inconsciente como um locus psíquico formado por conteúdos que foram reprimidos e mandados ao esquecimento. O inconsciente freudiano é formado por material reprimido e esquecido, entretanto quando tais conteúdos vêm à tona causam sintomas e adoecimento psíquico, o esquecido quer ser relembrado.
O esquecimento nos indica o caminho para o mundo das trevas, foi por meio do esquecimento e lapsos de memória que Freud e Jung se depararam com o mundo inferior do inconsciente. O esquecimento abre caminhos para que corra vida.
A conversa entre Vladimir e Estragon não encontra profundidade, e nem conseguem encarar o próprio silêncio. Fato que possibilitaria questionamentos sobre a espera, não podem ficar parados ou encarar o tédio, que é o se dar conta do represamento da energia psíquica. Aquele local, desértico e sem vida, é como um inferno da alma, um platô da pura superficialidade da existência. Parece que tentam provar a existência em movimentações repetitivas, na dor sente que existem.
A repetição da aparição de Pozzo e Lucky é indicativo sobre o movimento repetitivo pelo qual estão passando, é o sinal que estão presos ao feitiço da eterna espera. Quase um grito para lhes dizer: – Acordem para o que está ocorrendo a vocês!
Como somente Vladimir tem contato com a memória, apenas ele recorda. Tal fato indica o contato com sua afetividade, nossa memória é afetiva – lembramos mais aquilo que nos movimenta eroticamente. No início da peça Vladimir não consegue rir, pois sua genitália doía quando tentava, o que demonstra sua forma estacionária de ligação com o outro. Após terminar um dia e iniciar o outro, representação de morte e renascimento, Vladmir pode se recordar do dia anterior, afinal agora está se ligando ao mundo que o circunda.
Vladimir foi capaz desse encontro erótico, assim enfrentará o inferno da consciência: de ver-se sozinho num mar de pessoas que não reconhecem a mediocridade de sua existência. O medo da morte representado por Didi e Gogo no primeiro ato parece representar a solidão da consciência após cruzar o mundo dos mortos e ressurgir à vida.
A criança reaparece e mais uma vez dá o recado de que Godot não chegará, o puer também não se lembra do encontro anterior. Os encontros são esquecidos e o tempo transcorre, o encontro entre pessoas é olvidado. O esquecimento surge como representação da falta de eros, esse deus é o que nos liga ao outro, é nossa ligação afetiva com pessoas e com o mundo.
A árvore com poucas folhas simboliza esse poder erótico brotando insurgente em Vladimir, que mesmo demonstrando consciência, não tem forças de ir além da espera por GodOt-God Out, esse deus externo que não aparecerá caso não forem ao encontro deste. Esse é o feitiço do tempo, o complexo, o tônus afetivo ligado a um tema como explica Pieri (2002), no caso da peça aqui discutida o tema é a espera. O complexo só irá ser resolvido quando o enigma for revelado ou descoberto.
Não havendo Eros, nem mesmo Godot se dá conta que tem de ir ao encontro de Vladimir e Estragon, eles devem ir ao encontro de Godot ou não mais esperar. Existe a possibilidade de seguir vários caminhos, a estrada tem dois cursos e, ao contrário do que diz Vladimir no inicio da peça:
-Nada a ser feito.
Devemos discordar.
Tudo a ser feito!
A espera, quando fica na superficialidade da existência, leva a pura mediocridade e à prisão no feitiço do tempo. A vida nos mostra vários caminhos e devemos seguir aquele que o coração indica, que a alma aponta. A espera por uma salvação é a não introjeção do entendimento de que os deuses não estão fora, mas sim dentro de nós.
Tais divindades somente irão surgir caso nossa vida se movimente, caso os caminhos sejam desvendados, assim como nos mostra a história do “Fantástico Mundo de OZ”: a salvação e o encontro com a poderosa magia só é capaz quando pegarmos a estrada de tijolos amarelos. Caso contrário, ficaremos sempre presos ao passado e à espera. À espera de um ônibus que nunca chega, ficando no vazio de lugar nenhum, no puro cinza.
Por isso deve-se ir de encontro ao vazio, ele nos dá a indicação da profundeza da alma, abarcando a possibilidade que se abram novos caminhos e rios que possam correr a criatividade e o rio da vida. Encontrar-se com o nada é ir de encontro ao tudo e a todas as possibilidades de criação humana.
REFERÊNCIAS
BECKETT, Samuel. (2005). Esperando Godot.São Paulo: Cosac Naify.
BRANDÃO, Junito de Souza. (1997). Mitologia Grega (Vol I). Petrópolis: Vozes.
BRANDÃO, Junito de Souza. (1988). Mitologia Grega (Vol II).Petrópolis, RJ: Vozes.
HILMANN, James. (2013). O sonho e o mundo das trevas.Petropolis: Vozes.
JUNG, Carl Gustav. (2009). Psicologia e alquimia. Vol. XII. Petropolis: Vozes.
JUNG, Carl Gustav. (2009). O espírito na arte e na ciência.Vol. XV. Petrópolis: Vozes.
NEUMANN, Erich. (2006). A Grande Mãe:Um estudo fenomenológico da constituição feminina do inconsciente. São Paulo: Cultrix.
PIERI, Paolo Francesco. (2002). Dicionário Junguiano. São Paulo: Paulus.